Afinal, o CDC é aplicável aos contratos de compra e venda de imóvel?

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) é tido por muitos juristas como um código à frente do seu tempo. Com a entrada em vigor do mesmo, lá no ano de 1990, a sensação era de que o Brasil estava no caminho certo da regulamentação dos direitos consumeristas.

Ocorre que, passados mais de 30 anos de sua vigência ainda restam dúvidas sobre a sua aplicação em diversos setores. Um claro exemplo disso é quanto à aplicação do CDC nos contratos de compra e venda de imóveis firmados diretamente com os construtores/incorporadores, em especial quando se fala em atraso na entrega das chaves.
Porém, recente tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça traz nova discussão sobre o assunto.
 
Contratos de compra e venda de imóvel se enquadram na relação de consumo?
 
O CDC é aplicável aos contratos de relação de consumo. Para configurar essa relação, é necessário ter em uma ponta do contrato aquele que qualificamos como fornecedor de produtos e serviços, e de outro lado o consumidor final.
Primeiramente temos que trabalhar o conceito de fornecedor de produtos e serviços. Citamos abaixo a definição legal:

Art. 3° – Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° – Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° – Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Construtor/incorporador pode ser pessoa física ou jurídica, normalmente privada. Ele desenvolve atividade de construção e comercialização de produtos. Produto é todo e qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Apartamento ou casa é um bem imóvel material. Portanto, resta cristalino que o construtor/incorporador que participa da cadeia produtiva do empreendimento é fornecedor de produtos e serviços.

Já o art. 2º do CDC, define  que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.” No caso, aquele que adquire um imóvel de um construtor com a finalidade de residência, é nos termos da lei, o consumidor final.

Do ponto de vista contratual, podemos dizer que os contratos de compra e venda de imóveis firmados com construtoras/incorporadoras são da modalidade de adesão, ou seja, contratos dos quais o consumidor possui apenas a liberdade de contratar, a liberdade de dizer sim ou não para essa contratação. Lado outro, não há nessa relação qualquer espaço para discussão de cláusulas contratuais, não existe a chamada liberdade contratual que ocorre quando as partes sentam e formulam as cláusulas em comum acordo.
Em um cenário em que temos um construtor/incorporador vendendo um imóvel para uma família, cujo objetivo é comprar para residir, temos claramente a configuração de uma relação de consumo, sendo aplicável ao contrato as regras do Código de Defesa do Consumidor.

Importante destacar que nem toda venda de imóvel vai se enquadrar na relação de consumo, pois nem todo vendedor é um fornecedor de produtos ou serviços.
 
Estão previstos direitos e deveres do comprador de imóveis no CDC?
 
Uma vez reconhecida a existência de relação de consumo em contratos de compra e venda, regras básicas de relação de consumo devem ser respeitadas.
Primeiramente, são direitos básicos do consumidor receber a informação adequada e clara do produto ou serviço adquirido; proteção contra propaganda enganosa e abusiva; e prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais (art. 6º, III, IV e VI, CDC).
Outros direitos são encontrados nos artigos 39, 51 e 53 do Código de Defesa do Consumidor.
Todos esses acima citados são direitos inerentes à relação contratual, devem ser respeitados e devidamente aplicados em todas as fases do contrato (pré contratual, contratual e pós contratual).
 
O que o STJ disse a respeito? 
 
Queremos destacar aqui uma importante decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do Recurso Especial 1.891.498/SP, que acabou definindo uma tese que deverá ser aplicada em todo território nacional:
 
TEMA 1095: “Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.”
 
Na prática, o que o STJ definiu foi que nos contratos de compra e venda firmados diretamente com os construtores/incorporadores, caso o comprador se torne inadimplente, a resolução do contrato deverá seguir as regras da Lei 9.514/97, e não um processo de rescisão com restituição ao comprador das parcelas pagas, conforme determina o art. 53 do Código de Defesa do Consumidor.
A Lei 9.514/97 é amplamente utilizada pelas instituições financeiras em seus contratos de empréstimo habitacional. Ela traz o benefício da garantia real de alienação fiduciária e a possibilidade de executar a dívida do contrato de forma extrajudicial, ou seja, pode levar o imóvel a leilão sem precisar de autorização judicial para isso.
 
É possível aplicar uma lei mais prejudicial ao consumidor? 
 
A tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça é de fato duvidosa, pois a Lei 9.514/97, apesar de ser especial e posterior ao Código de Defesa do Consumidor tem como finalidade específica a criação do Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.
Em seu art. 2º, a lei define quem poderá operar dentro do SFI:

Art. 2º Poderão operar no SFI as caixas econômicas, os bancos comerciais, os bancos de investimento, os bancos com carteira de crédito imobiliário, as sociedades de crédito imobiliário, as associações de poupança e empréstimo, as companhias hipotecárias e, a critério do Conselho Monetário Nacional – CMN, outras entidades.

Ainda, referida lei define que a alienação fiduciária é modalidade de garantia contratual para operações realizadas no âmbito do financiamento imobiliário:

Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por:
(…)
IV – alienação fiduciária de coisa imóvel.Daí, o art. 22 complementa que “A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”.

A grande pega dessa lei, que para variar, prejudica o consumidor é a disposição contida no §2º do art. 5º que autoriza a aplicação das normas e condições permitidas às entidades operadoras do SFI para contratos de comercialização de imóveis com pagamento parcelado, de arrendamento mercantil de imóveis e de financiamento imobiliário em geral.

A primeira reflexão a se fazer é: se o Código de Defesa do Consumidor é matéria de ordem pública, se é dever do Estado garantir a defesa do consumidor, como então o Tribunal do Cidadão desconsidera a norma constitucional e de ordem pública para aplicar lei mais prejudicial ao consumidor?

Ademais, nossos Tribunais têm entendimento pacificado de que se aplicam as normas do CDC para revisão de contratos de compra e venda de imóveis firmados com construtores/incorporadores. Com essa nova tese do STJ, os mesmos contratos, se rescindidos, não podem ser interpretados pelo Código de Defesa do Consumidor. Na prática, se quero revisar meu contrato, aplico o CDC, se quero rescindir o meu contrato, não aplico o CDC.

Vamos admitir que realmente se aplica a Lei 9.514/97, porém o que não se observa nessa situação é que o construtor/incorporador não empresta dinheiro ao comprador para consecução da operação assim como ocorre nos contratos de mútuo do SFI. Então, quando mandam o imóvel a leilão eles são beneficiados com as parcelas recebidas do comprador e também com o valor da arrematação contra total ausência de recursos investidos na operação de compra e venda, o que configura enriquecimento ilícito e também ofensa direta ao disposto no art. 53 do CDC.

Afinal, o poder judiciário precisa realmente decidir se vai ou não respeitar o Código de Defesa do Consumidor e aplicar aquilo que a lei determina.
 
Conclusão
 
Conforme destacado acima, a decisão do STJ coloca o comprador/consumidor em uma situação extremamente desconfortável e desequilibrada, pois em caso de inadimplência vai se ver sem o imóvel e sem o direito de receber de volta parte das parcelas já pagas para o construtor.
Do ponto de vista jurídico, essa decisão é uma verdadeira afronta ao direito do consumidor de reaver parte dos valores pagos ao fornecedor.
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